Queridos colegas,
Escrevo a vocês com grande alegria e respeito, para falar sobre um dos aspectos mais complexos e transformadores da prática terapêutica: a transferência no processo de análise. Espero que este seja um ponto de reflexão e apoio enquanto vocês se aprofundam na Psicologia Analítica.
Como sabem, a transferência é um fenômeno inevitável no relacionamento entre analista e paciente. Carl Gustav Jung descreveu-a como um elemento central da jornada de individuação – o caminho que cada um de nós percorre em direção à realização de nosso verdadeiro ‘eu’. Nesse processo, os pacientes, muitas vezes, projetam em nós sentimentos, desejos e emoções inconscientes que carregam dentro de si. Essas projeções podem surgir sob a forma de amor, admiração, raiva ou até mesmo frustração, e é através dessa dinâmica que o processo terapêutico ganha profundidade. Como Jung afirmou: “A transferência é a base do processo de cura no tratamento psicanalítico. Sem ela, o inconsciente permanece inconsciente” (Jung, 1946, A Psicologia da Transferência).
Freud, pioneiro nesse estudo, acreditava que o analista deveria manter-se em uma posição de neutralidade, permitindo que o paciente projetasse livremente seus conteúdos inconscientes. Ele entendia o silêncio do analista como um espelho, um espaço em branco onde o paciente pudesse confrontar-se consigo mesmo. Freud expressou essa ideia ao escrever: “O analista deve manter-se como uma tela em branco, evitando interferências pessoais no processo associativo do paciente” (Freud, 1912, Sobre a Dinâmica da Transferência). Para Freud, esse distanciamento permitia que os conteúdos inconscientes do paciente emergissem de forma mais livre, sem a influência direta do terapeuta.
Contudo, Jung, ao aprofundar esse conceito, reconheceu que essa relação não é unilateral. Nós, analistas, também trazemos nossos sentimentos e reações para o espaço terapêutico. Jung desenvolveu o conceito de contratransferência, que nada mais é do que os sentimentos e reações que surgem em nós, analistas, em resposta ao paciente. “É inevitável que o analista também desenvolva uma atitude emocional em relação ao paciente. A contratransferência, se usada com consciência, pode ser uma ferramenta valiosa no processo terapêutico” (Jung, 1951, Fundamentos da Psicoterapia).
Lembro-me de um caso que exemplifica bem esse fenômeno. Há muitos anos, atendi uma paciente que, ao longo de vários relacionamentos, via-se sempre como vítima, “usada” pelos homens em sua vida. Em certo momento, ela começou a transferir para mim essa mesma percepção, sentindo que eu, de algum modo, também a estava “usando”. Ao invés de me apressar para esclarecer ou reagir, mantive o silêncio necessário para que ela pudesse explorar mais profundamente seus próprios sentimentos. Com o tempo, ela se deu conta de uma verdade fundamental: “Será que eu também não usei esses homens?”, perguntou ela em uma sessão. Esse momento foi um ponto de virada, pois ela começou a reconhecer sua própria responsabilidade nas dinâmicas de seus relacionamentos. Como Jung descreveu: “O objetivo da análise é a transformação do paciente de um objeto inconsciente de seu destino em um sujeito consciente de seu próprio ser” (Jung, 1946, A Psicologia da Transferência). Ela finalmente percebeu que não era apenas objeto, mas também sujeito em suas relações.
É nesse sentido que o silêncio do analista ganha um significado tão especial. Longe de ser um gesto de distanciamento, o silêncio oferece ao paciente um espaço seguro para se ver, para confrontar seus desejos, ansiedades e fantasias. Ao não preenchermos o espaço com nossas respostas imediatas, damos ao paciente a oportunidade de projetar, explorar e, eventualmente, integrar aspectos ocultos de sua própria psique. Como Jung sabiamente afirmou: “A análise deve ser um processo de descoberta, e o paciente precisa fazer suas próprias descobertas com o mínimo de interferência por parte do analista” (Jung, 1954, A Prática da Psicoterapia).
Entretanto, devemos também estar conscientes de nossos próprios sentimentos. A contratransferência, se mal compreendida, pode se tornar um obstáculo, mas, se reconhecida e trabalhada, torna-se uma ferramenta valiosa. Ao sermos transparentes com nós mesmos, poderemos ajudar nossos pacientes de forma mais profunda, sem sermos capturados por suas projeções.
Quero deixar claro que a neutralidade e o silêncio não significam ausência de afeto ou empatia. Como terapeutas, somos testemunhas ativas do processo de autodescoberta de nossos pacientes. Estamos ali com eles, oferecendo uma presença segura e estável, mesmo quando não usamos palavras para intervir diretamente. Nosso silêncio é uma forma de convite para que o paciente explore suas próprias paisagens internas e encontre suas próprias respostas.
À medida que avançam em suas práticas, encorajo vocês a abraçarem a dinâmica da transferência com humildade e curiosidade. Lembrem-se de que o processo terapêutico é uma jornada compartilhada, em que tanto o paciente quanto o analista se transformam. Que vocês possam se permitir o silêncio, e que nesse espaço, seus pacientes possam encontrar o caminho de volta para si mesmos. (Trecho do Livro A Jornada da Alma: A Prática da Psicoterapia Junguiana)